Cantada

Cantada sempre existiu. Acredito que, por causa dela, nós existimos. Foi livre durante um bom tempo, creio que a partir algum ponto da segunda metade do século vinte, quando iniciou a liberação sexual da mulher. Num passado mais distante dependeria de aceitação das famílias, essas coisas. Cantada, cantada pura, sem compromisso maior do que o prazer do momento vivido, às vezes tendo que arcar com alguma responsabilidade decorrente. Um chefe poderia gostar do jeito de uma funcionária e dar uma cantada nela.
Época boa. Cantada fazia a mulher se sentir valorizada, como mulher, achando que valeu a pena investir nos cuidados consigo própria.
Os animais cantam um ao outro. Quem fica, de manhã cedo, próximo a uma árvore ouve as cantadas dos bem-te-vis-. E bem-te-vi de cá e viiiiiiií de lá, até se aproximarem. Tem cantada da rolinha, a da arara, com seu interminável ararararararara, além das cores realçadas.
Até que em certo momento veio a ditadura do politicamente concreto. Professor não pode cantar a aluna, chefe não pode cantar funcionária.
É claro que assedio havia e há muito, isso é muito negativo, até crime. Oferecer promoção, ou o contrario, exagerar nas exigências contra as que não aceitam. Mas havia a cantada pura e simples. Apenas pela expectativa de prazer. Continuava tudo do mesmo tamanho. Poderia evoluir para algo mais serio, um casamento, por exemplo. Mas poderia ficar por isso mesmo, apenas o prazer momentâneo.
Nos abusos em relação a cantadas deixou de ser catalogado um, não menos sério. Funcionária que abusa da cantada, que incentivou e aceitou, para tentar promoção no serviço. Deveria ser considerada assediadora também.

 

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