Filha corajosa
Minha filha ficou presa, durante muitos anos, na rede dos medicamentos psiquiátricos. Entrava ano e saia ano, ela cada vez mais depressiva, passava dias e mais dias, em quarto escuro. Não tinha ânimo para nada. Não admitia que eu participasse das suas consultas e eu não forçava, por medo de que ela, ainda por cima, deixasse de ir. Como ficaria aquela depressão, que não passava.
Eu tinha, em minha cabeça, um conceito. Todo remédio tem efeito colateral, que pode fazer mal ao organismo. Porém, a causa que levou a tomá-lo, deveria deixar de existir. É como uma dor, o medicamento pode fazer mal para o estômago, ou para o fígado, mas a dor tem que passar. Se a dor não passa, não se toma mais o medicamento.
Mesmo sem participar, de sessões, eu mandava mensagens ao psiquiatra, dizendo da situação e que deveria ser experimentada a retirada do medicamento, mas isso não era feito, apenas substituído.
A pandemia fez piorar tudo. Não podíamos, nem sabíamos como trocar de profissional e precisávamos das malditas receitas.
Eu não a conhecia mais, aquela não era minha filha, parecia que uma entidade teria se apropriado do seu corpo. Eu dizia, sem sucesso, que ela deveria pedir ao psiquiatra que retirasse os medicamentos, de forma administrada, mas ela me afastava, trancava-se no quarto e ficava, ainda mais dias, saindo só para comprar comida e ir ao banheiro. Engordou uns quarenta quilos. Banho, nem pensar. Uma vez cheguei a dizer: minha filha você esta cheirando como morador de rua. Pronto! Mais quarto escuro.
Escondi a chave do quarto dela, para não se trancar. Quando me perguntou disse simplesmente: procura nas suas bolsas. Quando tinha algum ânimo, fazia um exagero de compras e voltava ao quarto, sempre escuro. Deixou sete faculdades, entre presenciais e online, algumas disputadas.
O medicamento não era retirado, eram acrescentados outros, para corrigir o efeito e cada vez mais medicamentos. Pior, apagaram, ou adormeceram seu grande talento artístico, sem dar nada, em troca. Quando adolescente desenhava olhos humanos, que pareciam vivos.
Houve um dia, há mais de um ano, que ela quis dormir no meu quarto, mas não na minha cama, porque eu me mexia muito. Montei cama para ela, ao lado, encostada na minha, mais de uma noite. Um dia ela me segredou, que achava que tinha tido uma convulsão e mordido a língua. Deixou-me ver e a língua estava mordida. Marquei um médico neurologista e ela realmente tinha tido uma convulsão. Estava há dias sem tomar os medicamentos, tinha decidido parar por conta própria, coisa inteiramente desaconselhável. Porém notei que estava mais animada e não ficava presa no quarto.
Com passar do tempo, voltou a ser o que sempre foi. Recuperei a minha filha e mais, uma filha corajosa. Vi que eu também tinha que mudar, aceitá-la como é, não como eu queria que fosse. Agora vivemos bem, ela faz um curso de culinária gourmet, que adora e segue, aos poucos, um curso superior online, de professora de inglês, que eu a estimulei a fazer ainda no tempo da pandemia.
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